quinta-feira, 14 de junho de 2012

MINI-CONTO


  
Ponto cego


Francine Figueiredo

Chegou cansada e com frio. Resolveu fazer um chá para esquentar. Despejou um pouco da erva doce no fundo de uma xícara grande. Colocou a água para ferver. Resolveu dar uma espiada na janela. A noite estava fria, mas agradável. Seu apartamento ficava de frente para uma rua de mão dupla, a essa hora, com pouco movimento. Do outro lado, havia um prédio de apartamentos. Não reparou quando a luz do quarto em frente se ascendeu porque um carro cheio de fumaça parou em frente ao outro prédio.
O dono saiu do carro apressado. Abriu o capô. Uma nuvem branca cobriu tudo em volta. Um carro, depois outro e mais outro pararam atrás. Logo uma extensa fila se formou. As buzinas começaram a soar, seguidas de gritos e xingamentos. Quanta gente nervosa, meus Deus! Mais nervoso estava o dono do carro que fervia. Aliás, todas as pessoas envolvidas naquela cena aparentemente banal entraram em estado de ebulição. O dono do carro foi para a calçada. Falava ao celular com alguém.
Sem querer dirigiu o olhar para um quarto no prédio em frente. Uma mulher estava deitada, estirada na cama. Os pés largados cada um para um lado. A cortina estava aberta, mas somente era possível ver as pernas e os pés da mulher. Um homem entra no quarto com uma chaleira na mão. Para na porta. Fica alguns instantes de pé, olhando para a mulher que parecia estar dormindo. Ele entra e dirige-se à cabeceira da cama. O ponto cego. Ela vê as pernas e os pés da mulher tremerem e, em seguida, voltarem ao mesmo estado de inércia de antes. O homem sai do quarto com a chaleira na mão e desliga a luz.
A água do chá! Ela volta para cozinha e, quando chega perto da panela, só há vapor. Coloca mais água no fogo. Enquanto vigia a fervura, pensa no que poderia ter acontecido com a vizinha em frente. Quer voltar à janela, mas sente medo. Era melhor não olhar mais.
No dia seguinte, acorda com o barulho de uma ambulância. Dirige-se à janela e vê o corpo de uma mulher sendo levado numa maca. Muita gente em volta. Uma policial conversa com o porteiro e toma notas. Pessoas conversam em pequenos grupos. Uma senhora leva a mão à boca e arregala os olhos. Olha então para a janela em frente. A cortina está fechada. Sente culpa porque ficou inerte. A mesma inércia da mulher deitada na cama.
Certamente a polícia interrogará os vizinhos dos apartamentos ao lado para saber se alguém ouviu alguma coisa. Será que iriam interrogar os moradores do prédio em frente? Escovou os dentes, lavou o rosto. Vestiu uma calça jeans e uma camiseta. Antes de descer, tomou um longo copo d'água bem fria.

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