Progressos
e retrocessos
Ontem
participei de uma conversa sobre filosofia e rock. E não imaginava o
quanto um simples bate-bapo pudesse me trazer tanta inquietação.
Eu, que passei por um longo processo de busca de paz interior e achei
que tivesse alcançado meu objetivo, fui tomada por uma onda de
questionamentos sem fim a respeito da minha vida, das escolhas que
fiz no passado e que continuo tendo que fazer todos os dias, do modo
como fui criada pelos meus pais, dos valores que eles me passaram,
das minhas crenças sobre religião, profissão, dinheiro, sucesso,
relacionamento, homens, mulheres, felicidade e amor.
São
inúmeras perguntas que me fizeram pensar, que fizeram emergir
novamente uma indignação que está latente dentro mim. Ela vem e
volta. Recrudesce e arrefece de tempos em tempos. Não se trata de
questões hormonais, nem de “tpm”. Meu anticoncepcional resolve
isso para mim. O meu problema é de alma mesmo. Alma inquieta,
questionadora, indignada com um milhão de coisas. E para completar,
tive que ler no “facebook” um comentário terrivelmente antiquado
e machista, de que a esposa tem respeitar a autoridade do marido e
que as mulheres são frágeis... Quase caí dura! Um rapaz jovem, em
pleno século XXI, dizendo uma bobagem dessas! Será que ele nasceu
de chocadeira? Ou será que a mãe dele não sentiu dor nenhuma para
que ele viesse ao mundo? O que acontece na criação dos meninos que
fazem eles se esqueceram de que a mãe deles é uma mulher?
Voltando
à conversa filosófica, aprendi que o rock foi um movimento não só
musical, mas sobretudo cultural. Porém, há quem defenda que não há
nenhum tipo de conceito subjacente ao rock. É simplesmente música
(ou barulho) e ponto final. Aprendi também que o rock representou e
representa até hoje irreverência, marginalidade, delinquência,
liberdade sexual, e esbanjamento de uma energia (quase) incontrolável
que o ser humano tem dentro de si, um desejo visceral de ser alegre,
de curtir a vida, mas também de ser o que ele é. Mas o que o ser
humano é?
Ouvi
que alguns astros legendários do rock como Elvis Presley foi
engolido pelo “sistema”. A música de Elvis tem origem no “blues”
americano e, portanto, sua origem é negra. Seus movimentos sensuais
dos quadris e das pernas provocavam escândalo. Na televisão, ele
aparecia apenas da cintura para cima. Era um homem branco cantando e
dançando música de negros. Porém, ao logo da sua carreira, suas
músicas e seu gingado foram ficando cada vez mais “esbranquiçados”,
sem graça, sem brilho. Ele foi abandonando aos poucos a inspiração
africana, e a si mesmo.
De
lá pra cá, a humanidade se banhou em muitos rios, os ânimos
parecem ter arrefecido. Muitas bandas de rock começaram, fizeram um
estrondoso sucesso e terminaram. No Brasil, o RPM é um exemplo
emblemático. Os Rolling Stones, entretanto, surgidos na década de
sessenta, resistiram a todas as tempestades, às drogas, às crises
existenciais e econômicas. Estão planejando uma nova turnê. Hoje
eles têm completo domínio financeiro e administrativo da banda.
Dizem os entendidos que Mick Jagger sempre teve uma visão muito
racional do que precisava ser feito ou não para garantir o sucesso
dos Stones. Ele chegou a frequentar a curso de Economia. Dizem que
talvez isso explique o motivo da existência da banda até hoje e de
ainda fazerem tanto sucesso, inclusive entre as novas gerações.
Diferente
de Elvis, os Rolling Stones não foram engolidos pelo sistema. Eles
encontraram uma forma de se adaptar a ele, de tirar dele aquilo que
lhes pode ser útil. Eles sobreviveram. Quem viu shows recentes da
banda, afirma que Mick Jagger tem uma energia invejável para um
senhor de quase setenta anos. É a energia do rock. Será que eles
conseguiram continuar sendo eles mesmos? Irreverentes, alegres,
talvez menos drogados – mas ainda drogados –, com muita energia
para esbanjar e distribuir para as multidões sedentas de vida e de
música?
Mas
o que tudo isso tem a ver comigo? Com os progressos e retrocessos da
humanidade? Eu carrego dentro de mim essa irreverência, nascida de
uma profunda indignação como o status
quo,
com qualquer tipo de repressão, de preconceito, de inferiorização
do outro. Eu carrego dentro de mim uma delinquência contida.
Verdadeiro paradoxo, porque, como servidora pública, tenho o poder
de dizer quem pode ou não ficar na cadeia, recebo pedidos escritos
de próprio punho dos detentos que asseguram que são inocentes e
perdem perdão, inclusive, pelo crime que cometeram. E muitas vezes,
digo “não”, “você via continuar preso, porque você é uma
ameaça à sociedade”.
Na
época do “Woodstock”, os jovens que queriam um outro mundo, uma
outra sociedade, mais solidária, política e ecologicamente correta
e sobretudo sexualmente livre, eram considerados marginais e
libertinos. Acredito que, desde esse último ponto de vista, os
jovens alcançaram seu objetivo porque a sexualidade já não é uma
bandeira.
Contudo,
a liberdade sexual das mulheres, obtida com a pílula
anticoncepcional, e as conquistas de postos de trabalho, antes
ocupados exclusivamente pelos homens, e de salários (nem sempre)
iguais aos deles, se por um lado, deu-nos a tão aclamada
independência financeira, por outro, ainda não puderam nos livrar
da pecha de cidadãs de segunda categoria. A prova disso é o
comentário postado no “facebook” pelo rapaz do século XXI de
que falei.
Saí
da conversa sobre filosofia e rock com uma sensação incômoda de
que o “sistema”, do qual o machismo faz parte, engoliu todo
mundo. E o barulho do rock não suficientemente forte para derrubar
os muros medievais, já visivelmente ruídos pelo tempo, pelo simples
fato de que o ser humano não caminha sempre para frente. Muitas,
muitas vezes, caminhamos para trás, num saudosismo patético e
inútil. Parece que ainda não despertamos para o fato de que o
presente é o nosso momento. É aqui e agora que temos que fazer a
nossa história, dar o melhor que temos. Infelizmente, só
conseguimos repetir os erros do passado, cometidos pelos nossos pais
e avós e por nós mesmos. Assim caminha a humanidade!
Apesar
de tudo, não posso, não consigo, não quero acreditar que o
“sistema” me venceu. A minha indignação é o alimento da alma
inquieta que carrego neste corpo “frágil” de mulher. A minha
capacidade de pensar e de questionar é o que me move para me
permitir algum tipo de felicidade neste mundo dominado pelo dinheiro,
pelo consumismo, pelas convenções, pelos preconceitos, pela
violência, pela crueldade que o ser humano ainda traz consigo e da
qual é vítima todos os dias. Se Elvis não morreu e os Rolling
Stones ainda conseguem fazer pularem multidões, eu estou muito viva
e disposta a fazer muito barulho.