quarta-feira, 27 de junho de 2012

Sonhos e Cores


Sonhos e cores

Francine Figueiredo

Houve um tempo em que você era o sonho adolescente. Nossos encontros na beira do rio, ao mesmo tempo que saciavam minha sede do proibido, alimentavam minha fantasia de que nos amaríamos para sempre. Eu ficava te esperando escondida debaixo da nossa árvore que, embalada pela sinfonia do vento e dos pássaros, tornou-se cúmplice das nossas juras de amor, feitas entre beijos e abraços loucos de desejo e medo. Menina ainda me descobri mulher no teu corpo e nos teus olhos que me prometiam que nada nos separaria.
Houve um tempo em que você ser tornou inalcançável. Tão comprometido com seus próprios sonhos, com suas mulheres, com suas dívidas, com tudo o que não dizia respeito a mim. Você se afastou e me deixou sozinha, ainda apaixonada, e sonhando com o dia em que você voltaria a me olhar e a me tocar, e eu me sentiria merecedora de alguma felicidade ao teu lado.
Houve um tempo em que reencontramos o amor que já havíamos sentido e nos entregamos perdidamente àquela paixão antiga, acreditando que, dessa vez, seríamos realmente felizes e nada, absolutamente nada, poderia se colocar entre nós. Eu me sentia segura, amada e feliz. Acreditávamos-nos privilegiados porque enfim conquistamos o tesouro mais precioso: um amor verdadeiro e recíproco, como imaginamos nos nossos sonhos pequeno-burgueses.
Iludidos pela falsa cumplicidade numa redoma que apresentava microscópicas rachaduras, vimos a tempestade chegar devagarinho. A chuva e as rajadas de vento nos arrebataram e destruíram precocemente o nosso jardim que ainda crescia tímido, do qual brotavam as primeiras flores pequeninas e frágeis. Os pingos grossos d'água apenas permitiam que víssemos uma imagem embaçada do outro que já não reconhecíamos. Aos poucos o solo se abriu diante de nós e um abismo nos separou definitivamente.
Agora é tempo de dar outro colorido à vida e celebrar cada minuto de felicidade que, longe de você, consegui recuperar. Diante dos meus olhos aparece um quadro que me lembra as cores fortes de Van Gogh: a imagem de um casal de namorados numa mesa de um restaurante. Ele coloca a aliança no dedo dela: promessa de amor, de vida em comum, de alegria, de consenso. As taças de vinho se encontram num gesto que representa, simultaneamente, o sagrado e o profano. Eles sairão dali para se aventurarem em uma nova tela cujo cenário será a floresta misteriosa do amor. Ali eles se descobrirão, um ao outro e a si mesmos. E como Adão e Eva, viverão o paraíso e o inferno. O ciclo recomeça. EU recomeço.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Os fantasmas de Soninha

Glaucia Fontes

 

Quando eu comecei a namorar Soninha ela era espirituosa. Gostávamos de viajar, fazer trilhas, saíamos  para dançar e gostávamos das mesmas bandas de rock. Éramos um casal alegre e nos entendíamos muito bem. A única coisa que me deixava chateado era a insistência dela em que eu participasse dos almoços nos Domingos na casa da tia Valquíria. Eu passava a semana toda gravando meus seriados preferidos para assistir aos Domingos e aí vinha a Soninha dizendo que eu tinha que ir ao almoço da família porque iam perguntar por mim e era educado que eu fosse. Eu tentava arrumar desculpas, dizia que tinha planilhas e relatórios da empresa para terminar mas a Soninha ficava emburrada e eu acabava cedendo.

Já naquela época notava uma certa atração da Soninha pelo espelhinho que ficava à frente do seu banco. Toda vez que a Soninha entrava no carro abaixava o espelho. Eu perguntava se ela ia passar alguma maquiagem e ela dizia que não mas que gostava que o espelho ficasse abaixado para que pudesse ajeitar o seu cabelo. O fato é que Soninha não só passava o trajeto todo mexendo o cabelo como também conversava comigo olhando para o espelho e muitas vezes até me dava respostas evasivas de tão concentrada que estava na menina do espelho.

No início eu achava até um pouco engraçado  esse estranho hábito da Soninha até que uma vez perdi  a paciência quando fui fazer uma ultrapassagem e percebi que o meu retrovisor lateral que ficava no lado da Soninha não estava no meu campo de visão. Concluí depois de quase bater  que o espelho estava  no campo da visão da Soninha e ela tinha então dois ângulos para se olhar no carro. Naquele dia eu briguei feio com ela. Soninha foi chorando até  em casa e nem me despedi quando ela abriu a porta e disse um tchau meio cabisbaixa. Dei partida  e fui embora.

No dia seguinte acordei meio mal. Achei que fui duro demais com a Soninha. Passei numa loja, comprei um porta-joias  do tipo que tem um espelho dentro e fui levá-lo para ela. Conversamos e ela prometeu que jamais mexeria novamente no retrovisor lateral e acabamos a noite muito bem como sempre acabávamos.

O tempo foi passando. Eu acabei incorporando à minha rotina os almoços na casa da tia Valquíria e a estranha mania de Soninha de falar comigo olhando para o espelho quando estava no carro. Resolvemos casar. Escolhemos o apartamento, mobiliamos, fizemos uma grande festa e uma  bela viagem de lua de mel.

Ao retornar da viagem e entrar a primeira vez em nosso apartamento fiquei espantado. Três das quatro paredes  da sala e do quarto estavam revestidas com espelhos, ou seja, eram paredes de espelhos restando apenas a que tinha janela.



quinta-feira, 14 de junho de 2012

MINI-CONTO


  
Ponto cego


Francine Figueiredo

Chegou cansada e com frio. Resolveu fazer um chá para esquentar. Despejou um pouco da erva doce no fundo de uma xícara grande. Colocou a água para ferver. Resolveu dar uma espiada na janela. A noite estava fria, mas agradável. Seu apartamento ficava de frente para uma rua de mão dupla, a essa hora, com pouco movimento. Do outro lado, havia um prédio de apartamentos. Não reparou quando a luz do quarto em frente se ascendeu porque um carro cheio de fumaça parou em frente ao outro prédio.
O dono saiu do carro apressado. Abriu o capô. Uma nuvem branca cobriu tudo em volta. Um carro, depois outro e mais outro pararam atrás. Logo uma extensa fila se formou. As buzinas começaram a soar, seguidas de gritos e xingamentos. Quanta gente nervosa, meus Deus! Mais nervoso estava o dono do carro que fervia. Aliás, todas as pessoas envolvidas naquela cena aparentemente banal entraram em estado de ebulição. O dono do carro foi para a calçada. Falava ao celular com alguém.
Sem querer dirigiu o olhar para um quarto no prédio em frente. Uma mulher estava deitada, estirada na cama. Os pés largados cada um para um lado. A cortina estava aberta, mas somente era possível ver as pernas e os pés da mulher. Um homem entra no quarto com uma chaleira na mão. Para na porta. Fica alguns instantes de pé, olhando para a mulher que parecia estar dormindo. Ele entra e dirige-se à cabeceira da cama. O ponto cego. Ela vê as pernas e os pés da mulher tremerem e, em seguida, voltarem ao mesmo estado de inércia de antes. O homem sai do quarto com a chaleira na mão e desliga a luz.
A água do chá! Ela volta para cozinha e, quando chega perto da panela, só há vapor. Coloca mais água no fogo. Enquanto vigia a fervura, pensa no que poderia ter acontecido com a vizinha em frente. Quer voltar à janela, mas sente medo. Era melhor não olhar mais.
No dia seguinte, acorda com o barulho de uma ambulância. Dirige-se à janela e vê o corpo de uma mulher sendo levado numa maca. Muita gente em volta. Uma policial conversa com o porteiro e toma notas. Pessoas conversam em pequenos grupos. Uma senhora leva a mão à boca e arregala os olhos. Olha então para a janela em frente. A cortina está fechada. Sente culpa porque ficou inerte. A mesma inércia da mulher deitada na cama.
Certamente a polícia interrogará os vizinhos dos apartamentos ao lado para saber se alguém ouviu alguma coisa. Será que iriam interrogar os moradores do prédio em frente? Escovou os dentes, lavou o rosto. Vestiu uma calça jeans e uma camiseta. Antes de descer, tomou um longo copo d'água bem fria.

terça-feira, 12 de junho de 2012


Muito prazer

Francine Figueiredo

Muito prazer em conhecê-lo. Não sei seu nome, mas, dia sim, dia não, encontro com você em “flashes” do passado, em uma boca que não beijo mais, nos olhos e nos braços musculosos do professor de ioga, no bom caráter do ex-colega de faculdade que se formou um semestre depois da turma porque queria fazer a monografia final quando não era obrigatória, na inteligência do aluno de Direito que fez mestrado nos Estados Unidos e resolveu voltar para ser professor na Universidade em que estudou, no bom humor e na sensibilidade do namorado de adolescência, na alegria e simpatia do colega de trabalho que sempre chega sorrindo, nos cabelos e na voz doce e eloquente do professor de literatura...
Não sei se você é de outro planeta, se já viveu um romance comigo em vidas passadas, se ainda não nasceu, se mora em outra cidade ou outro país. Vejo-o no meio de tantos homens e, ao mesmo tempo, você não é nenhum deles. Se, por um lado, sinto-me ainda um fruto verde, insegura e despreparada para a vida, por outro, vejo-me madura o suficiente para tentar não errar de novo. Pelo menos, não cometer os mesmos erros. Prefiro observar porque a razão é meu esteio agora.
Ando solta, meio sem regras, sem rotina certa. Na verdade, não quero saber das regras que costumo inventar para mim mesma. Tenho me aborrecido com cobranças e horários. Não quero me exigir nada, nem me julgar, nem pensar no que eu tenho que fazer. Mas, lá no fundo, sei que vai chegar uma hora em que não poderei fugir. Você vai chegar com suas verdades e sentirei vontade de buscá-las dentro das minhas. Essas verdades nos guiarão no meu e no seu deserto. Lugar em que poderemos estar juntos sem deixar de ser quem somos; confiar no outro de olhos bem abertos; ser cúmplices de nossos crimes públicos e secretos.
Não quero ter que imaginar quem você é porque teria que mergulhar de novo no abismo da minha alma e me deparar com criaturas feias e belas. Por isso digo apenas: “Nice to meet you” ou “Mucho gusto” porque, por ora, me contento em olhá-lo nos olhos de todos sem saber qual é a cor dos seus, em tentar lembrar de um cheiro que se pareça com o seu, em não me permitir ser tocada por ninguém porque quero suas mãos. Por ora me basto, por ora estou apaixonada por mim. Estou vivendo um grande caso de amor comigo mesma.
Talvez um dia você bata à minha porta, ou eu bata à sua. Talvez nos encontremos na rua, em uma praça, em uma festa. Neste dia, quem sabe, eu estarei pronta para as minhas verdades, para as suas verdades. E, quem sabe, possamos criar juntos a nossa verdade.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Escrevi esta crônica um pouco antes de Ingrid Betancourt, ex-senadora colombiana sequestrada pelas FARC, ser libertada. Na época, eu era casada com um colombiano naturalizado brasileiro, que vive aqui no País há mais de trinta anos, e fazia pouco tempo que havíamos ido à Colômbia para que eu conhecesse toda a família dele. Tive a oportunidade de conhecer de perto, não só a alegria, os costumes e o jeito de viver dos colombianos "costeños", que vivem no ou perto do litoral, como ouvir e ler as histórias sobre o conflito entre traficantes, guerrilha, paramilitares, governo e população. Este texto nasceu depois que assisti a uma peça de teatro encenada, no Centro Cultural do Banco do Brasil-Brasília, pela atriz colombiana, radicada no Brasil, Carolina Virguez. Puedo afirmar seguramente que la historia de los colombianos no solo ha atravesado mi vida sino también hace parte de ella.

Colombia, tierra querida”

Francine Figueiredo

 
Um cômodo pequeno, sem janela; paredes cobertas de lodo e enegrecidas pela umidade; uma mesa de madeira quadrada e uma cadeira; um buraco no teto por onde os raios de sol se atrevem a iluminar a escuridão da selva; uma portinhola que se abre do chão com um pouco de comida, água e jornais velhos; em um canto da parede, recortes de fotos e notícias, antigas e novas.
Uma mulher que lutou, diariamente, para sobreviver a seis longos anos de cárcere. Uma mulher que retornou às suas origens para tentar sentir toda a dor e a agonia de um coração enfurecido e acorrentado. Duas mulheres unidas pelo amor ao seu país, pela crença sincera de que precisavam fazer a sua parte.
Em algum lugar no meio da Amazônia colombiana, ainda ressoa a “cumbia”, que embalou a dança solitária de Ingrid no cativeiro. A mente libertária que governa o corpo raquítico, enfraquecido e doente, mas vivo. O coração atordoado e dolorido, mas pulsante. “Soy colombiana”. Por trás de cada gesto, de cada palavra pronunciada por Carolina/Ingrid, o apelo da Colômbia pela paz.
Carolina Virguez, atriz colombiana radicada no Brasil, não é apenas a voz de Ingrid Betancourt, que atravessou a floresta e rompeu fronteiras; mas também a voz que clama pela liberdade roubada em nome de um ideário perdido, o corpo e a mente que agora tentam traduzir a realidade nua e crua dos cativeiros revolucionários colombianos.
Quem nunca teve sua vida sequestrada jamais conseguirá sentir ou sequer imaginar todas as dores que Ingrid sentiu. Mas é impossível não admirar a força e o amor de Ingrid pela Colômbia. E quem tiver a oportunidade de olhar um pouco mais de perto, verá que os colombianos são assim: fortes, destemidos, guerreiros. E, sobretudo, amam intensamente sua pátria.
Tierra querida”: frase da “cumbia” que Ingrid ouvia e dançava no cativeiro. “Tierra querida”: o país de Ingrid, de Carolina, dos colombianos sequestrados, revolucionários, paramilitares, traficantes, e dos colombianos comuns, que querem paz para ouvir suas músicas, dançar e beber muito rum nas “parrandas” que insistem em anoitecer e amanhecer nos lares “de los “pueblos”, nas ruas movimentadas de Bogotá e Medellín, nas praias do Caribe Colombiano, no carnaval de Barranquilla...

 

sábado, 2 de junho de 2012

AMOR ATRAVÉS DOS TEMPOS

Este é um dos meus poemas preferidos. Reencontrar o mesmo amor durante existências sucessivas pode ser uma ideia que não agrade tudo mundo, mas Drummond tratou disso com muito humor e com final feliz.

Balada do amor através das idades

Carlos Drummond de Andrade
"Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana, mas não Helena.
Saí do cavalo da pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.
Virei soldado romano.
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria do meu bergantim.
Mas quando ia te pegar 
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal...
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira...
Pulei muro de convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável,
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos."