quarta-feira, 30 de maio de 2012


Progressos e retrocessos

Ontem participei de uma conversa sobre filosofia e rock. E não imaginava o quanto um simples bate-bapo pudesse me trazer tanta inquietação. Eu, que passei por um longo processo de busca de paz interior e achei que tivesse alcançado meu objetivo, fui tomada por uma onda de questionamentos sem fim a respeito da minha vida, das escolhas que fiz no passado e que continuo tendo que fazer todos os dias, do modo como fui criada pelos meus pais, dos valores que eles me passaram, das minhas crenças sobre religião, profissão, dinheiro, sucesso, relacionamento, homens, mulheres, felicidade e amor.
São inúmeras perguntas que me fizeram pensar, que fizeram emergir novamente uma indignação que está latente dentro mim. Ela vem e volta. Recrudesce e arrefece de tempos em tempos. Não se trata de questões hormonais, nem de “tpm”. Meu anticoncepcional resolve isso para mim. O meu problema é de alma mesmo. Alma inquieta, questionadora, indignada com um milhão de coisas. E para completar, tive que ler no “facebook” um comentário terrivelmente antiquado e machista, de que a esposa tem respeitar a autoridade do marido e que as mulheres são frágeis... Quase caí dura! Um rapaz jovem, em pleno século XXI, dizendo uma bobagem dessas! Será que ele nasceu de chocadeira? Ou será que a mãe dele não sentiu dor nenhuma para que ele viesse ao mundo? O que acontece na criação dos meninos que fazem eles se esqueceram de que a mãe deles é uma mulher?
Voltando à conversa filosófica, aprendi que o rock foi um movimento não só musical, mas sobretudo cultural. Porém, há quem defenda que não há nenhum tipo de conceito subjacente ao rock. É simplesmente música (ou barulho) e ponto final. Aprendi também que o rock representou e representa até hoje irreverência, marginalidade, delinquência, liberdade sexual, e esbanjamento de uma energia (quase) incontrolável que o ser humano tem dentro de si, um desejo visceral de ser alegre, de curtir a vida, mas também de ser o que ele é. Mas o que o ser humano é?
Ouvi que alguns astros legendários do rock como Elvis Presley foi engolido pelo “sistema”. A música de Elvis tem origem no “blues” americano e, portanto, sua origem é negra. Seus movimentos sensuais dos quadris e das pernas provocavam escândalo. Na televisão, ele aparecia apenas da cintura para cima. Era um homem branco cantando e dançando música de negros. Porém, ao logo da sua carreira, suas músicas e seu gingado foram ficando cada vez mais “esbranquiçados”, sem graça, sem brilho. Ele foi abandonando aos poucos a inspiração africana, e a si mesmo.
De lá pra cá, a humanidade se banhou em muitos rios, os ânimos parecem ter arrefecido. Muitas bandas de rock começaram, fizeram um estrondoso sucesso e terminaram. No Brasil, o RPM é um exemplo emblemático. Os Rolling Stones, entretanto, surgidos na década de sessenta, resistiram a todas as tempestades, às drogas, às crises existenciais e econômicas. Estão planejando uma nova turnê. Hoje eles têm completo domínio financeiro e administrativo da banda. Dizem os entendidos que Mick Jagger sempre teve uma visão muito racional do que precisava ser feito ou não para garantir o sucesso dos Stones. Ele chegou a frequentar a curso de Economia. Dizem que talvez isso explique o motivo da existência da banda até hoje e de ainda fazerem tanto sucesso, inclusive entre as novas gerações.
Diferente de Elvis, os Rolling Stones não foram engolidos pelo sistema. Eles encontraram uma forma de se adaptar a ele, de tirar dele aquilo que lhes pode ser útil. Eles sobreviveram. Quem viu shows recentes da banda, afirma que Mick Jagger tem uma energia invejável para um senhor de quase setenta anos. É a energia do rock. Será que eles conseguiram continuar sendo eles mesmos? Irreverentes, alegres, talvez menos drogados – mas ainda drogados –, com muita energia para esbanjar e distribuir para as multidões sedentas de vida e de música?
Mas o que tudo isso tem a ver comigo? Com os progressos e retrocessos da humanidade? Eu carrego dentro de mim essa irreverência, nascida de uma profunda indignação como o status quo, com qualquer tipo de repressão, de preconceito, de inferiorização do outro. Eu carrego dentro de mim uma delinquência contida. Verdadeiro paradoxo, porque, como servidora pública, tenho o poder de dizer quem pode ou não ficar na cadeia, recebo pedidos escritos de próprio punho dos detentos que asseguram que são inocentes e perdem perdão, inclusive, pelo crime que cometeram. E muitas vezes, digo “não”, “você via continuar preso, porque você é uma ameaça à sociedade”.
Na época do “Woodstock”, os jovens que queriam um outro mundo, uma outra sociedade, mais solidária, política e ecologicamente correta e sobretudo sexualmente livre, eram considerados marginais e libertinos. Acredito que, desde esse último ponto de vista, os jovens alcançaram seu objetivo porque a sexualidade já não é uma bandeira.
Contudo, a liberdade sexual das mulheres, obtida com a pílula anticoncepcional, e as conquistas de postos de trabalho, antes ocupados exclusivamente pelos homens, e de salários (nem sempre) iguais aos deles, se por um lado, deu-nos a tão aclamada independência financeira, por outro, ainda não puderam nos livrar da pecha de cidadãs de segunda categoria. A prova disso é o comentário postado no “facebook” pelo rapaz do século XXI de que falei.
Saí da conversa sobre filosofia e rock com uma sensação incômoda de que o “sistema”, do qual o machismo faz parte, engoliu todo mundo. E o barulho do rock não suficientemente forte para derrubar os muros medievais, já visivelmente ruídos pelo tempo, pelo simples fato de que o ser humano não caminha sempre para frente. Muitas, muitas vezes, caminhamos para trás, num saudosismo patético e inútil. Parece que ainda não despertamos para o fato de que o presente é o nosso momento. É aqui e agora que temos que fazer a nossa história, dar o melhor que temos. Infelizmente, só conseguimos repetir os erros do passado, cometidos pelos nossos pais e avós e por nós mesmos. Assim caminha a humanidade!
Apesar de tudo, não posso, não consigo, não quero acreditar que o “sistema” me venceu. A minha indignação é o alimento da alma inquieta que carrego neste corpo “frágil” de mulher. A minha capacidade de pensar e de questionar é o que me move para me permitir algum tipo de felicidade neste mundo dominado pelo dinheiro, pelo consumismo, pelas convenções, pelos preconceitos, pela violência, pela crueldade que o ser humano ainda traz consigo e da qual é vítima todos os dias. Se Elvis não morreu e os Rolling Stones ainda conseguem fazer pularem multidões, eu estou muito viva e disposta a fazer muito barulho.

Um comentário:

  1. Muito feliz em saber que teremos você pertinho de nós através das suas palavras, inquietações, seus sonhos, devaneios e pensamentos, todos expressos de forma inteligente e intrinsicamente delicada!
    Parabéns!
    Bezo, bezo

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